O ponto cego da estratégia: você não otimiza o valor que não consegue descrever
Não dá para focar estratégia ou modernização se a organização não consegue descrever claramente como gera valor.
Muitas empresas investem pesado em digital e modernização sem um modelo simples e compartilhado de como o valor é produzido. Quando a liderança torna a criação de valor explícita, priorizar fica mais fácil, a sequência de investimentos clareia e a modernização deixa de espalhar esforço para todo lado.
Insight central
Grande parte das conversas de estratégia parte da premissa de que todos compartilham a mesma imagem de como o negócio cria valor. Na prática, essa imagem quase nunca é desenhada, testada ou sequer dita em voz alta.
Quando a criação de valor permanece como uma narrativa implícita na cabeça das lideranças, a modernização vira um exercício de adivinhação. Os investimentos correm atrás de problemas visíveis, boas histórias ou otimizações locais — não das poucas capacidades que realmente mudam os resultados. O efeito é otimizar atividade, não alavancagem.
O verdadeiro ponto cego estratégico não é falta de ideias ou de opções. É a ausência de um modelo mínimo e explícito de como as capacidades se transformam em valor — um modelo simples o suficiente para ser criticado, priorizado e deliberadamente alterado.
Contexto
Imagine uma reunião trimestral típica de portfólio. Os slides desfilam: migrações para nuvem, plataformas de dados, ondas de automação, novas funcionalidades, “pilotos de IA”. Cada iniciativa consegue explicar o seu próprio business case. Poucas conseguem mostrar como se encaixam em uma mudança coerente na forma de criar valor.
Em volta da mesa, cada liderança enxerga um pedaço diferente do sistema. Produto fala de conversão e engajamento. Operações fala de produtividade e erros. Finanças fala de custo e risco. Tecnologia fala de confiabilidade e velocidade de entrega. Todas essas lentes são verdadeiras, mas falta um mapa compartilhado que conecte as peças.
Nesse cenário, a modernização parece intensa e, ao mesmo tempo, pouco satisfatória. Orçamentos são grandes, times estão sempre no limite, e ainda assim a organização tem dificuldade de responder perguntas simples: Quais capacidades estamos, de fato, tentando construir? Onde estamos aumentando alavancagem, em vez de apenas “manter as luzes acesas”?
Por que isso acontece
Para começar, a estratégia muitas vezes fica no nível de slogans e temas amplos. “Ser mais customer‑centric.” “Virar uma organização data‑driven.” “Construir um negócio de plataforma.” Essas ideias ajudam a dar direção, mas raramente se traduzem em capacidades específicas e restrições concretas, que possam ser vistas e discutidas. A distância entre a história e o sistema permanece grande.
Além disso, o modelo operacional costuma ser organizado por função, não por valor. Orçamentos, metas e incentivos seguem departamentos e produtos, não fluxos de valor de ponta a ponta. Líderes viram especialistas em otimizar o seu pedaço — contact center, força de vendas, sistema core, rede de agências — sem uma visão forte da equação de valor completa.
O valor de software e dados também é menos tangível do que o de ativos físicos. Fábricas, lojas e caminhões são evidentes. Capacidades como “experimentar rápido”, “personalizar ofertas” ou “capturar risco quase em tempo real” não são. Com isso, tecnologia e arquitetura passam a ser discutidas como custo, ferramenta ou projeto, e não como alavancas explícitas do modelo de criação de valor.
Por fim, fóruns de governança tendem a premiar narrativas convincentes mais do que clareza estrutural. Em comitês e steerings, muitas vezes ganha a iniciativa com a história mais forte, maior urgência ou patrocinador mais influente. Sem um modelo de valor compartilhado na mesa, é difícil desafiar se aquela história, de fato, mexe nas restrições certas do sistema.
Evidências e sinais
Na prática, é possível perceber que a criação de valor não está explícita ouvindo como as decisões são justificadas e como a liderança fala sobre o portfólio.
Portfólios cheios, impacto difuso. A organização consegue apontar um roadmap robusto — migrações, plataformas, fábricas de features — mas tem dificuldade de explicar como isso muda a forma de criar valor para clientes e para o negócio. “Modernizar” vira um fim em si mesmo, não um meio para redesenhar capacidades.
Histórias de valor que não se encaixam. Quando você pergunta a líderes diferentes de onde vem o valor, surgem respostas distintas, às vezes conflitantes: marca e distribuição, dados e algoritmos, operações e eficiência, produto e experiência. Cada narrativa traz uma parte da verdade, mas não existe um jeito acordado de juntá‑las.
Decisões guiadas pela dor, não pela alavanca. Iniciativas são justificadas pelos problemas que resolvem — “essa fila é muito longa”, “esse sistema é muito arriscado”, “esse processo é muito manual” — em vez das capacidades que habilitam. A energia corre para as dores mais barulhentas, não necessariamente para as restrições mais poderosas.
Escolhas de tecnologia explicadas pela moda. Novas ferramentas, plataformas e padrões são adotados porque são “mais modernos”, “padrão de mercado” ou “o que o talento espera”, e não porque têm um papel claro no modelo de valor. A arquitetura caminha para o que é genérico, e não para o que é estrategicamente adequado.
Como agir
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Desenhe um modelo de criação de valor em uma página. Comece com um grupo pequeno de líderes seniores e obriguem‑se a descrever, em linguagem simples, como a organização cria valor hoje. Nomeiem os poucos fluxos de valor essenciais (por exemplo: adquirir, contratar, servir, reter, expandir) e os resultados que realmente importam em cada um.
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Nomeie as poucas capacidades que realmente importam. Para cada fluxo de valor, identifiquem as 5–7 capacidades que, se melhoradas de forma relevante, mudariam de maneira desproporcional os resultados. Pensem em coisas que a empresa passa a ser capaz de fazer — “aprovar crédito em minutos com visão clara de risco”, “personalizar ofertas em todos os canais”, “aprender com cada interação semanalmente” — e não apenas em sistemas.
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Tragam à tona as restrições reais. Para cada capacidade crítica, explorem o que de fato a limita hoje. É fragmentação de dados, direitos decisórios lentos, incerteza regulatória, contratos legados, lacunas de talento ou outra coisa? Façam a distinção entre sintomas (filas, incidentes, trabalho manual) e restrições estruturais (como o sistema foi desenhado e é governado).
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Reenquadrem o portfólio de modernização sob essa lógica. Peguem as iniciativas atuais e, para cada uma, respondam a duas perguntas: Que fluxo de valor essa iniciativa toca? Que capacidade e que restrição ela muda de forma significativa? Alguns itens vão se revelar periféricos; outros vão aparecer como peças‑chave. Usem isso para resequenciar, agrupar ou encerrar trabalhos, de modo que mais energia vá para pontos de alavancagem reais.
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Transformem o modelo de valor em artefato vivo. Levem esse modelo de uma página para ciclos de planejamento, fóruns de arquitetura e comitês de decisão. Peçam que propostas explicitem qual parte do modelo de valor pretendem melhorar e como o impacto será observado. Com o tempo, o modelo deve ser refinado à luz do aprendizado, não reinventado a cada ciclo de estratégia.
Se ignorarmos isso
Quando o modelo de criação de valor permanece vago, as organizações raramente “quebram” por causa de uma única aposta errada. Elas sofrem uma erosão lenta de foco e impacto.
Os portfólios ficam cada vez mais pesados. Os times se sentem constantemente sobrecarregados. E, mesmo assim, cada nova iniciativa move os indicadores apenas um pouco, porque o esforço se espalha por toda a organização em vez de se concentrar onde o impacto se multiplica. A resposta instintiva é “fazer mais”, quando a necessidade real é “fazer menos coisas, mais bem escolhidas”.
Ao mesmo tempo, concorrentes que constroem uma visão mais clara de capacidades e valor conseguem muitas vezes vencer com menos investimento total. Eles dizem mais “não” porque enxergam melhor quais restrições realmente importam. No longo prazo, o desnível que se abre não é apenas tecnológico. É um desnível de foco estratégico — entre organizações que conseguem descrever seu valor com precisão suficiente para otimizá‑lo e aquelas que não conseguem.